A proposta do PS e do Governo de Guterres de acabar com o SMO levantou uma grande celeuma, nas forças armadas e nos partidos políticos mas bastante menos na população em geral.
O Exército - a alta hierarquia - em especial, queria a manutenção do SMO. A direita sim e não. Sectores da direita defendiam um SMO de 4 meses que obviamente não tinha nenhum objectivo de defesa militar. O PCP defendia o SMO numa perspectiva de garantir que assim as FFAA com o SMO "o povo em armas" não tenderiam para uma forças armadas golpistas. A História por esse mundo além desmente esta ideia mas ela estava muito radicada em largos sectores da esquerda que a consideravam - sem fundamento - uma conquista da revolução francesa.
Esta questão foi abordada e analizada por RN com maior profundidade em vários estudos, no âmbito da sua actividade como deputado.
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Diário da Assembleia da República I série - Nº.104/VII/2 1997.07.31 |
O Sr. Raimundo Narciso (PS): - Sr.
Presidente, Srs. Deputados: A alteração do n.º 2 do artigo 276.º da Constituição é, na
realidade, o busílis de todas estas alterações ao Título X, sobre defesa e
Forças Armadas. A este respeito, quero dizer algumas singelas palavras.
Esta alteração, como todos sabemos, vem permitir o fim do Serviço militar
obrigatório. Não tem essas consequências imediatas, mas tê-las-á se nesta
Assembleia for aprovada uma lei do serviço militar nesse sentido.
O Grupo Parlamentar do Partido Socialista, eu pessoalmente, e o Governo temos
sobre isso uma posição clara e frontal: esta alteração à Constituição visa
permitir a concretização de uma promessa feita aquando dos Estados-Gerais e cumprir
o Programa do Governo, no sentido da extinção do Serviço militar obrigatório.
Lembro que o primeiro ponto do mesmo artigo mantém, isso sim, a meu ver, um
valor essencial, patriótico, que diz que a defesa da Pátria é direito e dever
fundamental de todos os portugueses. Penso que a forma como ele há-de ser
exercido é uma questão de tempo, circunstância e de conveniência do País em
relação às Forças Armadas.
O serviço militar obrigatório não é um valor em si, para o cidadão. Pelo
contrário, creio que é um ónus. Em todo o caso, é um ónus tolerável, nos tempos
que correm, nos tempos modernos. No passado, foi muito diferente. E não quero
referir os tempos idos, das levas de algemados e de militares recrutados à
força, situação que generais das nossas Forças Armadas consideravam odiosa. Mas
isso são tempos passados e bastante mais brutais, que não podemos encarar com
os olhos de hoje.
O serviço militar obrigatório é um conceito que tem vida no tempo. Nasceu,
viveu e, naturalmente, pode desaparecer. Com isso não virá mal ao mundo. Em
todo o caso, quero referir que, apesar de isso não ser um valor para o
indivíduo, pode ser, e foi-o, durante muito tempo, um valor para a Nação e uma
forma importante para a consolidação do conceito de Nação. E foi até há pouco
tempo, e pode voltar a ser, é preciso lembrá-lo, uma forma técnica, se
quisermos reduzir a isso, de alimentação das Forças Armadas para a defesa do
País.
Em todo o caso, para melhor entendermos e retirarmos a esta questão, de ser a
favor ou contra o serviço militar obrigatório, a carga que frequentemente tem,
diria que ela é muito polémica entre os especialistas civis ou militares,
embora creia que não o seja entre a população e os eleitores. Naturalmente, não
haverá qualquer sublevação se for decretado o fim do serviço militar
obrigatório.
Para abordar esta questão, que tem um valor e uma implicação muitíssimo grande, particularmente para as Forças Armadas e para a defesa do País, porque ela é estruturante das Forças Armadas, o desaparecimento do serviço militar obrigatório irá dar origem, a prazo, a umas Forças Armadas substancialmente diferentes.
Mas a abordagem desta questão deve ser feita em termos moderados, tendo em
conta a realidade e o tempo de hoje. Não seria correcto partir para esta
discussão na posição dos que defendem o fim do serviço militar obrigatório já,
em quaisquer momento e circunstância, ou na de aqueles que defendem o serviço
militar obrigatório sempre.
É curioso ter em conta o seguinte: o. serviço militar obrigatório é um conceito
que se formou com os enciclopedistas. A formação do conceito é anterior à
Revolução Francesa, não decorrendo, em absoluto, apenas dela. É com Diderot e
Rousseau que se começa a criar a concepção do serviço militar obrigatório, na
perspectiva da consolidação das nações.
O serviço militar obrigatório acaba por se impor pela necessidade, na Europa,
de crescentes exércitos massivos para as contínuas guerras de interesses, que
durante séculos caracterizaram o nosso continente, e não foi uma necessidade
para defender interesses laterais aos da defesa militar. O serviço militar
obrigatório teve o objectivo de criar exércitos cada vez maiores, como resposta
aos exércitos cada vez maiores do país do lado. É por isso que, apesar de tudo,
tendo a França dado um grande contributo,
particularmente teórico, para a consolidação deste conceito, não é por acaso
que é a Rússia, em 1814, que começa a
institucionalizar o serviço militar obrigatório.
Isto tem algum interesse, para que se desideologize esta ideia. A defesa do
serviço militar obrigatório percorre todas as correntes ideológicas. Vai da
esquerda à direita, e o contrário também se passa. Em todo o caso, a minha posição,
quero deixar isto bem claro, é a de que não sou a favor do serviço militar
obrigatório a todo o preço. Creio que chegou, na Europa e em Portugal, o
momento para acabar com ele. As razões disto são conhecidas e, por isso, alguma
surpresa me causaram - não muita, em todo o caso - as conclusões que a Sr.ª
Deputada Isabel Castro tirou, vendo nisto, como ela dizia, uma lógica belicista
de envolvimento militar do País. Pelo contrário, Sr.ª Deputada. A extinção do
serviço militar obrigatório, pela Europa fora - em 1993, na Holanda, em 1994,
na Bélgica, em 1995 na França, em fins de 1995 a proposta em Portugal, em 1996
na Espanha -, vem no sentido da desmilitarização da Europa e do Mundo, com o
fim da guerra fria. As Forças Armadas de toda a Europa, dos Estados Unidos, do
Canadá e da NATO sofreram reduções substanciais e até ao ano 2000 vão ficar
reduzidas a 50% dos seus efectivos. É exactamente a desnecessidade de forças
militares massivas que leva a que hoje se torne não apenas dispensável o
serviço militar obrigatório mas até mais adequada a sua extinção.
No entanto, como já referi, não acaba o direito e o dever de defesa da Pátria.
Aliás, a proposta do Governo é bem clara: o fim do serviço militar obrigatório
tem em vista o tempo de paz. Não é por acaso que isto sucede. Em tempo de
guerra, seguramente, será necessária a mobilização de todas as forças humanas
do País. Tenhamos em conta o que sucede com os países paladinos do serviço
militar voluntário e das forças profissionalizadas. Em três séculos, a
Inglaterra teve 30 anos de serviço militar obrigatório. E quando? Na I Guerra
Mundial e na II Guerra Mundial, tendo-se prolongado, depois, até 1963. Os
Estados Unidos da América sempre tiveram serviço militar voluntário e forças
profissionalizadas. Tiveram serviço militar obrigatório quando? Apenas durante
a I Guerra Mundial, a II Guerra Mundial, e até ao fim da guerra do Vietname.
O fim do serviço militar obrigatório não representa a militarização do País.
Pelo contrário, representa a desnecessidade de ter essa grande força por detrás
das armas.
Termino, chamando a atenção para o país real do serviço militar obrigatório
(SMO). Não vai haver qualquer cataclismo com o fim do serviço militar
obrigatório, nem para o País nem para as Forças Armadas. Hoje a Força Aérea não
tem qualquer militar do serviço militar obrigatório, a marinha tem alguns
militares residuais e o Exército, se contarmos o quadro permanente, tem apenas
24% das suas forças. E podemos dizer que esses militares do serviço militar
obrigatório que estão no exército são civis que estão efectivamente a fazer um
trabalho civil durante algum tempo, aligeirando as responsabilidades e o
trabalho do Exército.
Concluo dizendo que o SMO é hoje na Europa uma espécie em extinção, um produto
a passar o prazo de validade, o que não quer dizer. que, amanhã, mais tarde,
num futuro que não é previsível de imediato, possa vir a ser necessário, e
contra isso não há que ter qualquer preconceito.
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