A perspectiva da
substituição do serviço militar obrigatório (SMO) pelo voluntariado tem
provavelmente a concordância da maioria da população, mas tem sido encarada
nalguns meios civis e militares com preocupação e mesmo, nalguns casos, com
perplexidade.
Sem dúvida que uma
mudança tão transcendente para as Forças Armadas e para a Defesa Nacional não
poderia deixar de suscitar interrogações e a máxima atenção dos militares, dos
políticos e dos cidadãos mais atentos.
Curiosamente foram as
consequências de ordem cívica e cultural da extinção do SMO e não as de
carácter directamente militar que tiveram mais eco na comunicação social. Isso
deve-se, em parte pelo menos, ao facto de que rareiam os especialistas civis em
assuntos militares e ao facto de os militares no activo terem os seus direitos
de expressão e outros, excessivamente limitados pelo artigo 31º da Lei de
Defesa Nacional, o que urge alterar.
Porquê
extinguir o SMO?
Desde o fim da guerra
fria que na Europa decidiram extinguir o SMO, a Holanda, a Bélgica, a França e
a Espanha. E parece ser essa a tendência predominante em vários países do Leste
europeu, nomeadamente na Roménia e na Rússia. A Alemanha mantém o SMO mas as
facilidades para o substituir por um serviço cívico são tão grandes que o torna
quase voluntário. A Inglaterra, como se sabe, tem uma tradição de voluntariado,
como aliás sucede com os parceiros da NATO, além Atlântico, os Estados Unidos
da América e o Canadá.
Vemos assim que a decisão
de Portugal de abandonar o SMO, em tempo de paz,
não surge isolada, como um caso insólito, antes resulta de causas comuns a
outros países europeus da NATO. E que causas são essas? São de duas ordens.
Uma, a mais profunda e lenta que se vem acentuando desde a Segunda guerra
mundial, tem a ver com a revolução na ciência e na técnica e suas consequências
no armamento e na capacidade de informação, comunicação, comando e controlo. O
surgimento da arma nuclear, da informática, dos mísseis inteligentes, dos
satélites que permitem visionar todo globo terrestre, a panóplia de novas e
sofisticadíssimas armas não podiam deixar de ter consequências determinantes na
forma de fazer a guerra e consequências inevitáveis para o formato dos
exércitos. O potencial militar e a capacidade de submeter o inimigo deixou de
ter, como antes, uma relação directa com o número de efectivos. A revolução
científica e técnica tornou cada vez mais obsoletos os exércitos que apostavam
no número de soldados e como o serviço militar obrigatório é o meio para se ter
exércitos grandes era previsível que ele viesse, a prazo, a ser questionado.
A segunda causa da
obsolescência do SMO, pelo menos nesta fase histórica, e a que se revela mais
determinante para Portugal, pequena potência sem acesso às armas e meios mais
modernos e poderosos, é o fim da confrontação Leste-Oeste que criou uma
situação política e estratégica nova no nosso continente e no mundo com o
correspondente aparecimento de novas missões para as Forças Armadas.
Tal como a revolução
científica e técnica e de uma forma mais directa e imediata, no contexto da
Europa, da NATO e da União Europeia, o desaparecimento do perigo de invasão do
território não apenas de Portugal mas de qualquer dos seus parceiros da Aliança
Atlântica, influi no sentido da desnecessidade de Formas Armadas massivas e
portanto do SMO.
As Forças Armadas
Portuguesas têm como primeira missão permanente a defesa do território e da
soberania nacional e sem prejuízo das missões especificamente militares têm
importantes missões públicas ao serviço dos cidadãos mas, como intervenções
militares activas, o que as nossas FFAA têm no seu horizonte por muitos anos
são do tipo das que nos últimos anos têm tido na Bósnia-Herzegovina, em Angola,
ou na Guiné-Bissau.
As “guerras das nações”, como as classifica Michael Howard, (1) que caracterizaram o Batalha de Ourique ( 1139 ) e "o milagre" da vitória
último quartel do século XIX e a primeira metade de D.Afonso Henriques contra os 5 reis mouros.
do actual e que têm o seu
paradigma nas batalhas, não com milhares, como até essa altura, mas com milhões
de homens, como na Grande Guerra de 1914/18 e na 2ª Guerra Mundial, constituem
a causa da implantação do SMO.
Nestas guerras massivas a
vitória era determinada fundamentalmente pelo número de soldados que cada
potência podia conduzir aos campos de batalha. O serviço militar obrigatório,
extensivo a toda a população do Estado, como um elemento estruturante da
cidadania foi, é certo, um conceito ideológico elaborado pelos filósofos do
século XVIII. No entanto só se viria a
impor na vida real, apesar da resistência das populações, por uma necessidade
imperiosa da guerra e não para materializar um dever ou um direito de
cidadania.
Simplificando a realidade
para enfatizar a importância de um factor tecnológico na forma de fazer a
guerra e mudar o tipo de serviço militar diria que, mais do que as exigências
da cidadania, foi o comboio o
responsável principal, não pelo surgimento do conceito mas pela implantação
prática do serviço militar obrigatório.
O aparecimento do comboio
permitiu conduzir à frente de batalha vagas ininterruptas de víveres, armas,
munições e homens. Com a excepção das guerras revolucionárias e das guerras
napoleónicas, as antigas “guerras dos profissionais”, do século XVIII e parte
do século XIX, que por razões logísticas não tinham por vantajosos os exércitos
com mais de 60 ou 80 mil homens, deram lugar a guerras que envolviam milhões de
combatentes e exigiam a mobilização de todo o potencial humano das nações,
exigiam o SMO.
Que
ligação há entre SMO e cidadania?
Sendo incontroverso que o
serviço militar obrigatório se impôs, na Europa, no século XIX, pela novas
necessidades da guerra cabe, no entanto, perguntar se toda a retórica em torno
do seu papel estruturante da cidadania, da consolidação das nações, de mediador
da “nação em armas”, não passará de “ideologia” para convencer uma população
que se mostra refractária a marchar para o matadouro da guerra.
Tendo em conta a
associação ideológica do serviço militar obrigatório às ideias republicanas,
democráticas ou de esquerda, fará ainda qualquer sentido exigir a sua
continuação com o receio de um imaginário regresso aos impopulares exércitos
profissionais do século XIX? Exércitos profissionais como o francês
pós-Napoleão, o inglês, o prussiano, o austríaco ou o russo, que nos meados do
século passado “se mantiveram ocupadíssimos a reprimir motins e revoluções
dentro das fronteiras dos respectivos Estados em vez de lutarem ou se
prepararem para lutar uns contra os outros”? (Michael Howard. op. cit. pág.
114)
Veremos que a resposta a
estas questões não pode ser linear e que tem fundamento a relação, que começou
por ser apenas conceptual, entre serviço militar e cidadania.
Para melhor nos
apercebermos da relação entre a cidadania e o SMO, parece-me importante
estudá-lo numa perspectiva histórica, no seu devir, e no espaço alargado da
Europa. Será necessário passar um breve olhar pelo caso da França, a
"pátria da conscrição" onde o conceito se formou e partir depois para
o estudo do SMO em Portugal avaliando-o no contexto das formas muito
diversificadas de serviço militar que o antecederam.
A França - "pátria da conscrição"
O conceito moderno de
serviço militar obrigatório, extensivo a todos os cidadãos do sexo masculino ou
universal começa, segundo Raoul Girardet (3) a formar-se com os
enciclopedistas, os filósofos franceses do século XVIII.
O conceito de serviço
militar obrigatório, em conexão estreita com o conceito de cidadão surge de
forma clara e expressiva no artigo “Armées” da Enciclopédia, a obra maior de
Diderot, elaborada entre 1746 e 1776, quando o filósofo diz que “il faudrait
que, dans chaque condition, le citoyen eût deux habits, l´habit de son etát et
l’habit militaire”.
Montesquieu dá do serviço
militar obrigatório a mesma noção e também Jean-Jacques Rousseau, no seu ensaio
sobre “O Governo da Polónia”, retoma esta mesma ligação estreita entre
conscrição e cidadania. Para ela contribuem também, militares e homens de
letras. Nesta época o serviço militar obrigatório é também defendido e
divulgado por Maurice de Saxe em “Rêveries”, por Servan, numa publicação de
1780, denominada “Le soldat citoyen” ou pelo marechal de Belle-Isle.
Mais pelo pioneirismo na
elaboração do conceito do que pela sua consagração na prática, a França
tornou-se uma referência obrigatória quando se fala de serviço militar
obrigatório.
Girardet garante que
apesar de toda a retórica que atribui à Revolução Francesa a instauração da
conscrição, isso não corresponde à realidade histórica.
De facto, nos primeiros
passos da revolução francesa o deputado à Assembleia Constituinte
Dubois-Crancé, em Dezembro de 1789, procura em vão aprovar o serviço militar
obrigatório explicando que “em França
todo o cidadão deve ser soldado e todo o soldado cidadão”. Mas a ideia teve
apenas o apoio muito restrito de uma minoria de deputados e foi rejeitada em
nome, quem diria!... da liberdade.
Com a Revolução Francesa
nasce isso sim, na sua fase inicial e moderada a Guarda Nacional que fornecerá
ao Exército forças constituídas por civis armados. Mas que civis? Apenas os que
provassem ter um nível de riqueza acima de certo limiar, os chamados cidadãos activos, os únicos que tinham
ganho o direito de voto, no sistema
eleitoral censitário aprovado pela Constituinte. Esta, que apenas três
meses antes aprovara a progressista Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, já recuava assustada com a entrada das
classes mais desfavorecidas no movimento revolucionário e aprovava uma lei
eleitoral de que excluía os franceses mais pobres. O sufrágio universal teria
de esperar pelo levantamento popular de Paris, em 10 de Agosto de 1792, que
acabaria por levar ao poder os jacobinos Robespierre e Marat.
Outra referência
incontornável quando se estuda o processo de enraizamento do serviço militar
obrigatório em França, é a batalha de Valmy
que representa a primeira grande vitória da Revolução face aos exércitos
invasores da Áustria imperial e da Prússia monárquica já com o caminho aberto
para Paris.
Mas é necessário precisar
que a vitória de Valmy não se deve ao serviço militar obrigatório. Ele não
existia então a não ser que queiramos indevidamente dar esse nome às sucessivas
mobilizações do povo revolucionário, principalmente em Paris, para salvar a
revolução. A vitória de Valmy é conseguida ainda com o exército real do antigo
regime mas reforçado, e talvez decisivamente, por uma mobilização geral de
todos os homens válidos de Paris. Apesar da sua duvidosa preparação, são os 60
mil civis armados chegados da capital que dão um novo moral às tropas e decidem
do desfecho da batalha.
A “levée en masse”, a mobilização geral do povo francês para a
guerra, decretada em 23 de Agosto de 1793, pela Convenção, outra referência que
se pretende comprobatória do serviço militar obrigatório, é apenas uma medida
que tem os limites temporais e os contornos da defesa da revolução. Não é
ainda, muito longe disso, a institucionalização do serviço militar obrigatório.
O artigo 1º do decreto de
mobilização dizia: “Desde este momento,
até à expulsão dos inimigos do território francês todos os Franceses estão
permanentemente requisitados.”
São então requisitados
para as fileiras todos os jovens dos 18 aos 23 anos.
Com a requisição em
massa, no início de 1794, a jovem República conseguiu pôr em linha 600 mil
combatentes que lhe permitiu enfrentar a Europa monárquica coligada.
A Revolução Francesa vai
consagrar, isso sim, com a Lei Jourdan,
de 5 de Setembro de 1798, uma forma que representa uma aproximação do serviço
militar obrigatório universal, o sistema
de sorteio. Consagra-se o princípio da conscrição e submetem-se ao serviço
militar os jovens dos 20 aos 25 anos. São incorporados por sorteio os que forem
necessários ao Exército. Mais tarde o sistema é adulterado e entra-se num
período histórico, que vai até 1872 em que, quem tiver dinheiro compra um infeliz
que o substitua.
Na realidade o sistema
livrava do serviço militar os filhos de todos os que estivessem acima do
remediado. Os desfavorecidos da sorte que não conseguiam escapar ao serviço
militar estavam, além disso, proibidos de se casar durante os cinco, seis ou
oito anos, tantos quanto durava o serviço militar imposto. A sua situação era
tão deplorável que frequentemente a vida os empurrava para a continuação
indefinida nas fileiras. Por isso, em todo esse período, o exército francês,
como o nosso, mais do que um exército profissional é um exército de soldados velhos.
Lá, como em Portugal,
durante todo este período, há uma clara repulsa e medo da requisição para as
fileiras, excepto naquelas camadas que pela sua situação endinheirada estava
livre do perigo.
Para a França, 1870 é o
momento de tirar lições a respeito da conscrição. Lições amargas que a levam a
não adiar por mais tempo o serviço militar obrigatório a que a população
francesa resistia. Nesse ano, o imperador Napoleão III, para escamotear
problemas sociais internos, desafia a Prússia. Mas esta, que tinha um exército
municiado pela torrente contínua do serviço militar obrigatório universal desde
1814, criado por Gerhard von Scharnhorst (o mestre de Clausewitz) e Frederico
Guilherme III, derrota um exército de cem mil homens comandados pelo próprio
Napoleão III, na batalha de Sedan, em Setembro de 1870. Vitorioso, o rei da
Prússia, Guilherme I, humilha a França proclamando-se imperador no palácio de
Versalhes, em 18 de Janeiro de 1871. Em 1872, já em plena III República, é
decretado o serviço militar obrigatório para todos os homens.
Mas resistências à
universalidade do serviço militar subsistem e com elas, ainda que de forma mais
mitigada, o sistema de sorteio e certas isenções.
Só com a lei de 1905 o
serviço militar obrigatório, com a sua configuração moderna, respeitando o
princípio da sua universalidade e com um sistema coerente de serviço militar
efectivo, situação de reserva e reserva territorial é instituído em França.
O processo histórico de
implantação do serviço militar obrigatório e a sua ligação à ideia de
cidadania, pode, em França, dividir-se em três fases. A primeira vai da
elaboração ideológica pelos filósofos, na segunda metade do século XVIII até à
Revolução Francesa. A segunda fase, denominada de sistema Jourdan e que
corresponde ao sistema de sorteio, às isenções e à incorporação dos infelizes
que não têm o dinheiro suficiente para se livrarem, vai de 1798 a 1872 durante a III República, após a
derrota face à Prússia. E a terceira fase vai desde essa data até a
actualidade. Até ao presidente Chirac.
A
Inglaterra desde a revolução burguesa de 1663, em três séculos de História,
adoptou o recurso da conscrição apenas durante trinta anos. Durante a 1ª e 2ª
Guerra Mundial e, na sequência desta, até 1963. Os EUA adoptaram Forças Armadas
profissionais desde a independência, excepto em curtos períodos - Guerra da
Secessão, 1ª e 2ª Guerra Mundial e depois, durante a guerra fria, até ao fim da
guerra do Vietname.
A Grã Bretanha, por ser
uma ilha e os EUA por serem uma quase-ilha, só necessitaram do serviço militar
obrigatório em tempo de guerra. E não deixaram por isso, de constituírem nações
e os seus habitantes terem consciência cívica e patriótica.
Gerard
Bonnardot, num estudo sobre a conscrição e o exército profissional, no Reino
Unido, (4) considera que desde 1679, com o acto
institucional do habeas corpus, ao
garantir o primado da liberdade individual em matéria de justiça, se tornou
juridicamente inaceitável o constrangimento físico para assegurar a defesa do
país, fora de circunstâncias excepcionais, como a de perigo de guerra.
Em Portugal, como aliás
na Europa continental, o processo de afirmação do serviço militar obrigatório,
como nova técnica de recrutamento e como valor de identificação nacional, à
parte os filósofos, seguiu um percurso idêntico ao da França, nos seus aspectos
mais gerais.
Numa linha de defesa do
serviço militar obrigatório à outrance
há quem use o argumento de que a sua extinção questionaria a própria nacionalidade
com base na presunção de que o serviço militar obrigatório existe desde que há
Portugal.
Esta opinião não é
sustentada pela realidade. Ela tem na base a assimilação da conscrição às
formas compulsivas de obrigar à participação na defesa, não os cidadãos,
conceito que só surge muitos séculos após a fundação do reino, mas os súbditos
da Coroa.
Lancemos então um olhar
retrospectivo ao serviço militar que Portugal adoptou desde a sua origem até a
actualidade. Às formas e aos critérios de recrutamento. Talvez isso ajude a
avaliar com mais segurança as consequências da profissionalização nas condições
do mundo de hoje.
Das
milícias concelhias do rei D. Dinis à Restauração.
O Condado Portucalense e
depois Portugal mais do que outros reinos ou principados da Europa de então,
por se encontrar na fronteira de duas civilizações antagónicas, a Cristandade e
o Islão, viu-se obrigado a cuidar com a máxima energia e saber da sua defesa. É
esta situação de fronteira que conduz Portugal a certas formas de organização
social e do território nomeadamente no domínio da organização da sua defesa,
que parcialmente o distinguem da ordem feudal da época.
Com as fronteiras de
Portugal praticamente estabelecidas, necessitava o rei D. Dinis de as defender
dos inimigos externos e com maior urgência ainda da nobreza que por todo o país tentava
alargar os seus poderes senhoriais em prejuízo do poder central do rei.
Com as leis de 1290,
ataca D. Dinis os desmandos da nobreza feudal e diminui o seu poder,
nomeadamente “proibindo os grandes senhores de possuírem recintos
fortificados”. Compensa o rei o enfraquecimento do poder militar da nobreza, um
dos pilares da organização militar do reino, com a primeira organização regular
das milícias concelhias. A
reorganização militar do reino, executada por D. Dinis, na qual a
institucionalização das milícias concelhias terá um papel chave, que se
repercutirá ao longo de todo o século XIV, é inspirada no Livro das Sete Partidas de seu avô, Afonso X
de Castela.
As milícias concelhias de
Besteiros de Conto (besteiros porque usam a besta, arma portátil de arremesso,
e do conto porque cada concelho tem de fornecer um número determinado de
homens) resultam do alistamento obrigatório de um número fixo de homens que
além dos pequenos lavradores inclui agora, e essa é a novidade, os homens de
ofício ou mesteirais.
Com uma força militar
planeada, em tempo de paz, em cada concelho, ainda que de concretização
problemática, o rei passa a dispor de uma força acrescida face à nobreza todo
poderosa.
O rei passa agora
a contar com quatro tipos de forças distintas pela natureza do seu recrutamento
e capacidade militar:
– cavalaria dos nobres acontiados, designação que quer dizer pagos;
– cavalaria das ordens religiosas, uma força permanente, profissional
e muito poderosa.
– cavalaria vilã, pertencente ao terceiro
estado, cuja participação é gratuita, mas permite adquirir compensatórias
regalias;
– milícia municipal dos besteiros de conto, composta por pequenos
proprietários de terra e por mesteirais submetida ao serviço militar não
remunerado e que assume também um papel de reserva de recrutamento.
Para a boa organização
das milícias municipais foi criada uma estrutura e linha hierárquica de que
faziam parte os anadéis, capitães dos
besteiros a quem cumpria garantir os efectivos estabelecidos para a sua
área geográfica, a anadaria
(distrito militar), o seu armamento e treino.
As Ordens
Militares tiveram durante muitos séculos uma importância muito grande na
História nacional.
A cavalaria das Ordens
Militares era uma força militar que se pode considerar profissional e permanente. Isso dava-lhe um grande poder
relativamente às outras forças armadas. Elas tiveram um grande papel quer na
política de conquista e alargamento das fronteiras de Portugal quer nos empreendimentos
militares dos séculos posteriores e por isso a partir de certa altura a coroa
passou a controlá-las de perto fazendo seus Mestres familiares do rei quando
não ele próprio.
As ordens militares dos
Templários e dos Hospitalários pouco activas no Condado Portucalense têm, no
entanto, um papel importante logo com D. Afonso Henriques: "A conquista de Lisboa e Santarém é que
parece ter marcado uma importante viragem na penetração e activação das duas ordens
palestinianas entre nós." (5)
Na década de setenta do
século XII surgem em Portugal duas novas ordens militares de origem peninsular,
uma leonesa, a de Santiago da Espada e outra portuguesa a dos freires de Évora
que adoptará o nome de Ordem de Avis depois da doação desta região, por D.
Afonso II em 1211. (6)
Uma medida de grande
alcance do rei D. Dinis é a “nacionalização”
das ordens militares com sede noutros países e dependentes de Grão-Mestres
estrangeiros, como era o caso dos Templários, Hospitalários e Santiago da
Espada.
Os templários portugueses,
passaram mais tarde, a integrar a nova Ordem de Cristo. D. Dinis tal como os
reis de Castela e Aragão salvaram os mestrados da Ordem do Templo situados nos
seus reinos do aniquilamento que atingiu a Ordem. O seu poderio, riqueza e
abusos, levou Filipe o Belo, rei de França, movido pelo temor e a inveja e com
a tolerância do papa Clemente V, a apoderar-se dos seus valiosos bens e a
extinguir a Ordem, em 1307, na sequência dum processo fraudulento que levou à
fogueira o seu Mestre. (7)
Ao contrário das forças
próprias de cada grande senhor, que vão perdendo força relativa ou vão
desaparecendo, com a extinção da sociedade feudal e a centralização do poder
real, as milícias concelhias ou terços
de auxiliares que surgem com D. Dinis, constituem outro pilar da defesa de
Portugal que vai perdurar por sete séculos até ao Constitucionalismo.
As
reformas militares do rei D. Fernando.
No último quartel
do século XIV, o rei D. Fernando,
chefe militar incapaz mas razoável organizador, após as nefastas guerras contra
Castela e respectivos reveses, procurou melhorar a organização militar do reino
com a introdução de reformas à legislação militar do seu bisavô.
“No intuito de alargar a
obrigação do serviço militar, essas Ordens de 1373 tratavam de averiguar ao certo
as rendas e moradores de cada povoação para lhes impor equitativamente o número
de homens, armas e cavalos que deveriam ter e faziam apurar o número de
jornaleiros para em caso de aperto servirem com as armas dos cavaleiros vilões
já pousados (reformados). Assim fazia entrar ao serviço da guerra até a mais
ínfima das classes populares, à qual, segundo a legislação da época, não tocava
o dever de correr as armas.” — diz
Carlos Selvagem no seu Portugal Militar (8) para em seguida considerar perfeita esta
organização da "nação em armas"!
Talvez mais perfeita na
concepção do que na aplicação prática pois esta, esbarrou sempre na dificuldade
em motivar os “barrigas ao sol” que sistematicamente fugiam a defender interesses e valores que
dificilmente poderiam reconhecer como seus.
A situação dos
cavaleiros-vilões era muito diferente, eles foram adquirindo privilégios
significativos na guerra como na paz. Formavam na vanguarda da hoste o que
constituía uma importante distinção e podiam adquirir cargos públicos,
isenções, governo de terras e atingida a idade da reforma, aos 70 anos, idade,
aliás, a que poucos chegariam, recebiam do concelho a carta de cavaleiro
pousado que lhe permitia manter privilégios.
As ordenações Afonsinas
Menos de um século
volvido, ao tempo de D. Afonso V,
num período em que os limites de Portugal se encontram consolidados mas
persiste o ambiente convulsionado da guerra, agora principalmente com a
potência centrípeta que é Castela, as ordenações
afonsinas, promulgadas em 1444, mérito da sábia regência de seu tio D.
Pedro, sistematizam toda a legislação militar anterior e contemplam a
organização de todas as classes e de toda a população para a defesa do reino.
As formas de recrutamento e de prestação do
serviço militar tinham evoluído e já ao tempo das reformas militares de D. João
I, em 1408, a par da besteria do conto, a milícia municipal, existe a milícia
dos acontiados das câmaras, de nível superior aquela. Uma e outra destas
milícias continuam a ser uma reserva de forças militares do rei, que lhe
acrescenta poder e autonomia face ao poder militar da nobreza.
A milícia dos acontiados
das câmaras, é paga e é constituída pelos lavradores que tenham um rendimento
superior a um certo valor enquanto a besteria do conto é constituída pelos
homens de ofício ou mesteirais, mas só os casados e não lavradores.
As Ordenanças Sebásticas
As Ordenações Afonsinas
evoluem e aperfeiçoam-se no reinado do pouco avisado rei D. Sebastião que, com
a trágica derrota e morte em Alcácer Quibir, abriu caminho à perda da
independência de Portugal. São as Ordenações Sebásticas. Pela lei de 9 de Dezembro de 1569 reorganizava-se a nação para a
defesa e, incluindo o que hoje chamaríamos uma lei do serviço militar e lei de
mobilização, estabeleciam-se “as obrigações
militares da população do reino, conforme as categorias sociais, a propriedade
territorial os bens móveis, as profissões e as províncias.” (9)
Os grandes fidalgos e
outros possuidores de muitas terras e “servos” eram obrigados a ter, operativa,
para servir o rei, uma determinada força armada, homens, cavalos, lanças e
arcabuzes.
“Os que percebiam 200$000
réis ou mais de rendimento deviam ter cavalos e armas; aqueles cujas rendas não
excedessem 100$000 réis, deviam pelo menos ter arcabuzes, finalmente os não
proprietários, os mecânicos ou trabalhadores rurais eram obrigados a ter lança,
meia lança ou dardo.”(Ibidem)
O cumprimento destas
obrigações dava direito a privilégios, a fuga a elas implicava penalizações.
A par da organização
militar por classes sociais e profissionais estabelecia-se a organização
territorial. “Foi esse o objecto do
regulamento de 10 de Dezembro de 1570, também chamado Regimento dos capitães
mores e mais oficiais das companhias de gente de cavalo e de pé, e da ordem que
devem ter em se exercitarem ou Regimento das companhias de ordenanças.
(Ordenanças Sebásticas)” ((Ibidem)
O reino foi dividido em
grandes distritos de recrutamento, as capitanias-mor com chefes próprios com
grande poder, os alcaides mores,
auxiliados pelos sargentos-mores de
ordenanças. Tinham a obrigação de fazer o alistamento de todos os homens
dos 20 aos 60 anos com exclusão dos fidalgos, membros da Igreja, proprietários
possuidoras de cavalo e outras classes e categorias da população.
A Restauração e o surgimento do Exército
Permanente
Durante os sessentas anos
em que Portugal viveu sob a coroa dos Filipes, muita coisa mudara na arte de
fazer a guerra e de recrutar os homens necessários para ela.
A guerra da restauração
da independência que se prolongaria por três décadas, teve que ser feita com um
exército que à partida não existia. E o que se levantou foi à imagem dos que já
há muito combatiam nas guerras que assolavam e arruinavam a Europa – um exército profissional e permanente.
Esta é a grande novidade:
os soldados do exército de linha eram agora, tal como os quadros, pagos pelo
erário régio o mesmo sucedendo aos soldados dos Terços de Auxiliares ou Milícia
quando chamados ao activo. Este Exército de Linha inaugurava uma nova era na
história militar de Portugal a era dos exércitos profissionais e permanentes, e
que iria perdurar por três séculos e meio até ao SMO, já no século XX.
"A partir da
Restauração, Portugal passa a ter exércitos profissionais à moda da Europa, de
dezenas de milhares de homens, mas mal pagos, deficientemente instruídos e pior
equipados e aquartelados.... A incorporação quase forçada de vadios e outros
marginais introduzia nas fileiras elementos fermento de vícios." (10)
Portugal para restaurar a
sua independência tinha de se preparar rapidamente para fazer frente aos
exércitos de Espanha, então ocupados com a Catalunha em rebelião, e à
inevitável guerra que se adivinhava e durou, ainda que com intervalos, 28 anos.
A situação era
calamitosa. Poucas eram as armas, os cavalos, as fortalezas de fronteira
operacionais. A Marinha estava reduzida a uma
vintena de obsoletos navios. Mas pior que tudo isto era a escassez de
quadros militares preparados e o desmantelamento do sistema de recrutamento, a
organização das Ordenanças.
D. João IV começou por
criar o Conselho da Guerra, um
antepassado dos futuros Ministérios da Guerra, e a reconstituição das
Ordenanças Sebásticas, de 1570.
Os oficiais, recrutados
entre a nobreza eram nomeados pelo rei e para garantir o recrutamento e a
instrução foram nomeados os governadores militares pelas regiões de então e
alistados todos os homens dos 16 aos 60
anos.
As Ordenanças forneceram
os soldados, escolhidos por sorteio, entre os filhos segundos de todo o
terceiro estado, com excepção dos lavradores e das viuvas.
Além do “exército
de linha” que constituía o exército combatente, destinado à manobra, foi criado
um segundo escalão de forças territoriais – os terços de auxiliares –
constituídas pelos homens casados, os filhos de lavradores e de viúvas organizadas
em 30 “terços de auxiliares” a 600 homens. Os terços de auxiliares constituíam
uma reserva preparada para reforço do exército de linha em combate ou nas
guarnições de fortalezas.
Eram forças
municipais, organizadas em cada concelho de acordo com a tradição, onde os
critérios de recrutamento de graduados e o treino deixavam muito a desejar.
A organização militar de
toda a população comportava ainda um terceiro escalão, constituído pelas
Companhias de Ordenanças e que tinha a natureza de um depósito de recrutamento
dos soldados dos dois primeiros escalões.
Apesar do papel importante
dos terços de auxiliares, era manifestamente inferior a qualificação dos seus
quadros, escolhidos por critérios não militares, "devendo os seus postos
ao empenho e protecção", era menor a sua disciplina e espírito de corpo, e
fraca a sua capacidade operacional.
Isso fica bem patente na
batalha das Linhas de Elvas, travada a 13 de Janeiro de 1659. Depois de uma
difícil e grande vitória das armas portuguesas comandadas pelo conde de
Cantanhede, futuro marquês de Marialva, causando grandes perdas ao exército
castelhano, os seus resultados práticos ficaram muito diminuídos porque não foi
possível perseguir as forças espanholas e obter a exploração do sucesso. Tal
situação resultou de a massa das nossas forças nesta batalha ser constituída
por milicianos que mal obtida a vitória se desmobilizou e cavalheirescamente
“regressou a casa” fugindo aos rigores do inverno com o pensamento nos afazeres
agrícolas inadiáveis.
Situação similar
ocorreu mais tarde na sequência da vitória das armas portuguesas em Ameixial,
em 8 de Junho de 1663. Reconquistadas várias praças alentejanas pretendia
o conde de Castelo Melhor, passar à
contra-ofensiva e recuperar Vila Viçosa, Crato, Olivença e outras praças mas os
camponeses fardados, em especial os terços de auxiliares – a milícia – não
resistiram às habituais tréguas de verão, a fugir do calor abrasador e a
regressar rapidamente às suas terras para as colheitas.
Além destas forças
militares regulares D. João IV tinha ao seu serviço forças especiais: a Guarda
Real de Archeiros, formada por cem portugueses com comandante português e cem
alemães com comandante alemão, a Guarda Real de Ginetes, o Corpo Académico de
Coimbra (um terço) comandado pelo reitor da universidade e vários terços de
mercenários holandeses, franceses, ingleses e de outros países entre os quais
elevado número de oficiais, contratados a príncipes e outros comerciantes de
mão de obra especializada numa actividade em constante expansão – a guerra.
Foi
com um exército permanente, tropas profissionais, mercenários, o que havia e se
recomendava, na época, que Portugal defendeu e consolidou a sua independência.
O
Exército comandado por “mercenários”.
Com a paz a Leste a
Espanha vira-se para Portugal e o perigo parecia fatal. Já sob a regência de D.
Luísa de Gusmão, a rainha viuva de D. João IV, espanhola de nascimento mas boa
portuguesa, contrata-se em França, um discípulo de Turenne, o génio militar da
época, o conde alemão Schomberg que
virá para Portugal com muitos outros oficiais e militares desempregados com o
fim das hostilidades entre a França e o império espanhol, firmado pelo Tratado
dos Pirinéus.
Com o posto de Mestre de
Campo General, assumiu as funções de chefe de estado maior general e de
comandante das forças estrangeiras (franceses, ingleses e alemães) e foi ele o
reorganizador do Exército português naquela fase final da guerra da
restauração.
Como
vê Oliveira Martins a situação?
“As duas campanhas de
1641 e 42 não passaram de escaramuças e reconhecimentos. De parte a parte
faltavam os meios de combate; não havia exércitos. Os espanhóis esperavam os
regimentos que andavam na Flandres e na Catalunha; e o exército português compunha-se de um agregado de mercenários bisonhos
sem disciplina, nem comando. Além de que a guerra era no século XVII, coisa
diferente do que fora no XIV, via-se que
o povo não acudia, como no tempo do Mestre de Avis.
.......
Só a desorganização
completa a que a Espanha chegara livrou D. João IV do cativeiro ou da morte,
fazendo crer que em Portugal havia, com efeito energia e vontade de
independência. O Bragança insistia por que se licenciassem os batalhões
mercenários holandeses, por serem hereges, e isto quando a deserção ardia por
toda a parte: passavam de 3000 os desertores
no princípio de 1643.
.....
Nos anos de 45 e 46 nada
se fez.. A deserção fervia; os holandeses mercenários passavam-se para o
inimigo e os naturais fugiam para as suas aldeias. O recrutamento em rusgas, assolara todo o reino, e as resistências
surgiam por vários pontos. Nas cortes de 1646 ouviu-se um lamento
universal: era o povo a dizer os roubos dos capitães-mores, as rapinas da
soldadesca, a crueldade dos aboletamentos. Os pais, as mães dos desertores iam
presos por culpa dos filhos...” (11)
Com D João V e por alvará
de 1707 procede-se a nova reorganização do Exército e estabelecem-se as Novas
Ordenanças.
Com esta reforma “proibiu-se a venda de postos militares,
bem como a sua troca entre oficiais de linha e oficiais das ordenanças ou dos
terços de auxiliares ficando só autorizado entre oficiais de linha da mesma
arma e graduação” (12)
Foi exigido saber ler e
escrever aos tenentes, alferes e sargentos. “Aboliu-se o antigo uso do alistamento e organização de tropas, a soldo de particulares”.
(Ibidem)
À reorganização sobreveio
a paz e à paz a redução de despesas e o deixa andar. Quando em 1735 um rebate,
felizmente falso, nos fez correr ao exército o seu “estado era deplorável”.
“deviam-se seis meses de soldo aos oficiais, a instrução era nula, faltavam
armamentos... tudo se achava desorganizado” (Ibidem)
A nossa excelente
organização dos recursos humanos para a defesa militar do país as Ordenanças
ficava na prática, frequentemente, muito aquém da teoria. É assim que, reinava
já D. José e governava o Marquês de Pombal quando nos bate à porta a guerra dos
Sete Anos.
Pombal, recorreu à
Prússia de Frederico II, “O Grande”, para comprar generais, doutrina, um
exército em suma, que era onde os havia
dos melhores.
Foi assim que ao nosso já
periférico país chegou o prussiano conde
Guilherme de Schaumburg-Lippe.
Trouxe com ele um príncipe e dois batalhões suíços. Nomeado Marechal general do
Exército português reorganizou as nossas forças militares, estabeleceu planos,
introduziu novos métodos de instrução, sistemas defensivos de fronteira,
técnicas, tácticas e estratégias, e levantou um exército de linha
(profissional) com 8 mil portugueses e 8 mil ingleses que a Inglaterra nos
enviou para defender os seus interesses aqui e nos ajudar.
Manteve-se, o sistema dos
terços de auxiliares, capitanias-mores e companhias de ordenanças. Passou a
vigorar a genuína disciplina prussiana. Os nossos militares (não sei se os
ingleses também...) foram "disciplinados" com, varadas, açoites,
prisão a pão e água e o fuzilamento.
Com a queda do Marquês de
Pombal “ o exército português foi decaindo sempre até à ruína total” (Ibidem) Até que tivemos a primeira
visita de Napoleão! Que se fez representar, como se sabe, em 1807 pelo exército
de Junot.
Para receber Junot
tínhamos cerca de 12 mil soldados no exército de linha, que incluía a
infantaria, cavalaria e artilharia e uma força mais ou menos virtual de quase
53 mil milicianos a que se juntou dias
antes da chegada dos franceses a Lisboa 14 mil recrutas alistados à pressa em
Lisboa. A mais importante decisão “militar” foi a da partida do príncipe João e
da corte para o Brasil a 28 de Novembro de 1807. Uma medida defensiva de
carácter estratégico inventada pelo marquês de Pombal.
Com a Europa apavorada
com Napoleão o príncipe regente D. João não teve outro remédio, senão adjudicar
o governo de Portugal ao rei de Inglaterra que para o efeito enviou para
Portugal, transformado em campo de batalha e de pilhagem, com largos poderes e
sucessivos exércitos, Sir Arthur Wellesley, futuro duque de Wellington comandante geral das forças inglesas e portuguesas. A
comandar o exército português ficou o inglês Beresford promovido a marechal general e comandante em chefe.
Expulso os inimigos
Franceses e derrotado Napoleão tivemos então que sofrer os “amigos” Ingleses
com Beresford senhor absoluto do exército português apoiado em oficiais
ingleses nos seus lugares chaves e por isso mesmo com poderes acrescidos no
Conselho da Regência. Em resumo, continuávamos sob a protecção inglesa, a
ditadura de Beresford e o país transformado em acampamento militar.
As levas de recrutas algemados
Com a criação do exército
permanente a partir da Restauração este passa a ser uma instituição com
carácter nacional, única e mais ou menos uniforme. A sua existência física em
permanência dá-lhe além da prontidão e operacionalidade uma visibilidade
acrescida. A par do bom, também se torna mais visível, nos recrutamentos, a
corrupção e o odioso e nos intervalos da paz a suicida negligência com a
defesa, o abandono da disciplina, dos militares e da sua dignidade.
De acordo com as
necessidades do exército ia-se às ordenanças e através de levas recrutavam-se
os soldados para as tropas de linha.
"As levas eram um
acontecimento a que só escapavam os privilegiados, os cheios de sorte, mas com
a qual alguns lucravam.
"Na obra citada [ "O capitão de Infantaria Português", de André Ribeiro Coutinho, 1751]
são indicados mais de vinte privilégios que concediam isenção....Ficavam livres
das levas os que tinham meios para comprar bulas ou nomeações de "pedidor
de esmolas" a irmandades e confrarias; os filhos dos moradores ou
usufruidores de reguengos, ducados, terras de conventos; estudantes de Coimbra;
os que se encontravam no âmbito dos privilégios concedidos a congregações e
conventos; os filhos e criados de moedeiros; os filhos, criados, caseiros e
"apaniguados" dos desembargadores... os filhos únicos de lavradores,
....
"Se se juntar a tudo
isto os membros do clero regular e secular, mais os seus criados - para não falar,
claro está na nobreza - fácil é verificar que só restava como grande massa
mobilizável os camponeses pobres e os jornaleiros..." (13)
Mais adiante Pereira
Marques afirma que " a leva caía na sede comarcã como um verdadeiro
cataclismo" e baseando-se nos relatos do "Capitão de Infantaria
Português", de André Ribeiro Coutinho cita exemplos de estratagemas dos
infelizes que pela sua condição não estavam livres de escapar ao recrutamento e
não tinham dinheiro suficiente para subornar os capitães-mores e seus agentes:
pais que apresentavam filhos trocados, mancebos que voluntariamente se
amputavam e simulavam doenças, outros que juravam estarem "casados de
futuro" (Ibidem)
Nas impressões recolhidas
sobre o exército português em
"Voyage au Portugal" o cientista alemão Link ao entrar em Portugal
por Elvas regista que " As tropas portuguesas são bastante boas; conheço
vários regimentos bem treinados e manobrando superiormente. Poder-se-iam
comparar com os corpos dos exércitos mais disciplinados". Relativamente ao
recrutamento diz que " Em 1798, uma grande quantidade de jovens foram
alistados à força... tomavam-se os homens onde os havia,... donde resultava que
se encontravam frequentemente longas filas de jovens, com as mãos algemadas
como criminosos." (Ibidem pág. 84 e
85)
Ainda de acordo com
Fernando Pereira Marques na obra citada, a páginas 95, Gomes Freire de Andrade
em "Ensaio sobre o método de organizar em Portugal o Exército"
(1806), diz que " é necessário eliminar o carácter violento, penoso,
odioso, da obrigação militar, que transforma cidadãos livres em escravos que só
recuperam a sua liberdade muitos anos depois. O seu juramento diante das
bandeiras perde deste modo, todo o valor, porque é como se fosse o "que
prestaria um homem carregado de ferros de que jamais procuraria livrar-se destes".
Era este o Exército
permanente, com o seu característico sistema de recrutamento, com as isenções e
os privilégios próprios da sociedade de que era espelho com as formas
compulsivas de obrigar ao serviço militar, que com poucas diferenças, com
heroísmos, grandezas e misérias serviu Portugal de meados do século XVII ao fim
do século XIX. Mas sem nada que se pudesse assimilar com o SMO, universal,
dever e direito de cidadania.
O serviço militar e o constitucionalismo
O triunfo das ideias
liberais com a rebelião militar de 1820 devolveu Beresford às Ilhas Britânicas
e, com avanços e recaídas, remeteu a monarquia absoluta a regime do passado.
Com a revolta militar de 1820 e as Cortes Gerais Constituintes, em 23 de Setembro
de 1821 nasceu o Constitucionalismo Português, 32 anos após a Grande Revolução
Francesa.
O sistema de ordenanças
começou por ser extinto logo em Agosto de 1821. A nova reserva territorial
passou então a ser constituída pelos batalhões da Guarda Nacional. No entanto,
o início da guerra civil entre os liberais constitucionalistas e os
absolutistas favoráveis a D. Miguel não permitiu consolidar o fim das
ordenanças. Quando este se apossou do trono, em 1928, restabeleceu as ordenanças
extinguiu os batalhões da Guarda Nacional e no seu lugar criou os batalhões de
voluntários realistas. Ao exército passou então a dar o nome de Exército
Apostólico.
As ordenanças só vêm a ser definitivamente
extintas em Abril de 1832 e as milícias três meses depois. Em
substituição destas como segunda linha são criados os batalhões de voluntários e da Guarda Nacional.
O sistema das ordenanças
com o fim do antigo regime estava condenado mas à rapidez com que a revolução
liberal procurou pôr-lhe fim não foi estranho a falta de confiança nele, uma
estrutura militar regionalizada submetida à influência das elites locais
conservadoras muito ligadas à Igreja e que, se tinha mostrado a sua capacidade
de organizar a guerrilha contra os invasores napoleónicos também a mostrara na
resistência miguelista contra os liberais.
A este respeito o general
Ramires de Oliveira considera que “O século XIX corresponde a uma fase de
transição entre os exércitos profissionais, dos reis absolutos, e a nova
concepção dos exércitos nacionais, semipermanentes, procurando uma fórmula de adaptação a uma
sociedade em rápida expansão e evolução. Asseguravam não mais a política pessoal conduzida pelo soberano
mas a política gestora dos interesses nacionais,...” (Op. Cit. pág. 201)
Em seguida, o gen.
Ramires de Oliveira verbera a extinção das ordenanças dizendo que se “destruiu
afinal a organização mais adaptada à maneira de ser do Povo Português, com um tipo de prestação
de serviço militar mais de carácter regional, temporário e excepcional,
substituído por um serviço de âmbito nacional prolongado e regular.”
A visão clara do
movimento imparável da História das primeiras considerações de Ramires de
Oliveira contrasta com a segunda que leva a confundir o sistema das ordenanças
com algo adaptado à maneira de ser do Povo Português quando de facto as
ordenanças constituem um sistema, excelente sem dúvida, mas adaptado, (que se
foi adaptando ao longo dos séculos), isso sim, às condições históricas do país.
Imposto pela necessidade
da guerra contra as invasões francesas e a imposição tirânica de Beresford, o
SMO vai abrindo caminho na organização militar da nação em tempo de paz. Com a vitória das ideias liberais tributárias da
Revolução Francesa, com o Constitucionalismo, o conceito de SMO universal e
dever de cidadania vai ganhando terreno na sociedade portuguesa.
Em
1869 é estabelecido o serviço militar obrigatório, não pago, por cinco anos,
findos os quais os militares passam a uma segunda linha ou primeira reserva e
depois para a reserva territorial até completarem cinquenta anos.
Os mancebos em idade
militar e apurados depois de inspecção médica eram convocados por sorteio até o seu número satisfazer as
necessidades do exército.
"Mas como, para
fundo de armamento, eram permitidas as remissões a dinheiro, a melhor parte da
população isentava-se e só eram compelidos a servir nas fileiras como sorteados
ou substitutos, os indigentes na sua quase totalidade analfabetos, o que
rebaixava o nível social do exército e consequentemente o seu valor
táctico." (Carlos Selvagem op. cit. pág. 580)
Nos últimos anos da
monarquia no início deste século, vigorava o sistema de recrutamento de praças
que vinha desde Beresford, o sistema de sorteio e que é uma aproximação ao
serviço militar obrigatório e universal. No entanto, com as substituições, as remissões e outros desvios à
universalidade do serviço militar, as arbitrariedades eram tantas que se criou
um verdadeiro fosso entre a nação e as Forças Armadas.
É isso mesmo que diz o
tenente de infantaria Cunha d’Eça e Almeida em “Remissões”, na Revista Militar
n.º 3 de 1908.
“Porque o serviço militar não é de facto pessoal e obrigatório, o Estado concede
remissões, ou, digamos as coisas pelos seus nomes, transacciona com o imposto de sangue, expressão
sonora que no nosso país só tem significado quando o colectado não dispõe de
150 mil réis.”
E põe em evidência o
desprestígio a que se chegou com “o serviço militar como uma mercadoria
negociável”. (14)
O serviço militar nas Constituições do
século XIX
É interessante observar
como as ideias liberais se repercutiram no ordenamento constitucional português
do século XIX relativamente ao serviço
militar.
"As Cortes Gerais
Extraordinárias e Constituintes, reunidas em Lisboa no ano de 1821 em nome da
Santíssima e Indivisível Trindade..." aprovaram em 23 de Setembro de 1822
a primeira Constituição portuguesa assinada por D. João VI na qual o seu artigo
19ª diz, com o seu colorido romântico, o seguinte:
“Todo o português deve
ser justo. Os seus principais deveres são venerar a Religião; amar a pátria; defendê-la
pelas armas, quando for chamado pela lei; obedecer à Constituição e às
leis; respeitar as Autoridades públicas; e contribuir para as despesas do
Estado.” (15)
Na Carta Constitucional
de 1826 o artigo 113º diz mais prosaicamente que “Todos os portugueses são obrigados a pegar em armas para sustentar a
independência e integridade do Reino e defendê-lo de seus inimigos externos e
internos.” (ibidem)
A Constituição Portuguesa
de 1838, reinava D. Maria II, dedica o capítulo sexto do título VI à Força
Armada e sobre a matéria que nos interessa diz no seu artigo 119º que "Todos os Portugueses são obrigados a
pegar em armas para defender a Constituição do Estado, e a independência e
integridade do Reino.”(ibidem)
A República institui o SMO
O serviço militar
obrigatório universal é institucionalizado em Portugal com a República, em
1911, na sequência da reorganização do Exército nesse ano.
No entanto, em Portugal,
como noutros países europeus, a universalidade do serviço militar obrigatório
raramente foi concretizada. Ou se voltava a estratagemas que deixavam de fora
os afortunados ou se adoptavam critérios que ajustavam a incorporação nas
fileiras às necessidades das Forças Armadas.
Em Portugal o alargamento
efectivo a todos os jovens do sexo
masculino só aconteceu durante a 1ª e 2ª guerras mundiais e durante o
período das guerras coloniais.
Da década de 80 para cá,
de um contingente recenseado de cerca de 100 mil mancebos o número dos que
realmente cumpriram o serviço militar foi baixando até aos 50% e nos últimos
anos a percentagens muito menores. Acrescem ainda distorções graves como a de
que só cerca de 15 % dos jovens que tem instrução igual ou superior ao 12º ano
de escolaridade são incorporados.
O SMO universal, com os
contornos actuais, ganha dignidade constitucional em 1911, com a primeira
Constituição do recém implantado regime republicano. O seu artigo 68º determina
que "Todos os portugueses, cada
qual segundo as suas aptidões, são obrigados pessoalmente ao serviço militar,
para sustentar a independência e a integridade da Pátria e da Constituição e
para defendê-las dos seus inimigos internos e externos.”(ibidem)
De sublinhar que pela
primeira vez se explicita o dever de
serviço militar como um serviço pessoal e se faz referência a inimigos
internos a par dos inimigos externos, visando naturalmente o perigo monárquico.
Na Constituição de 1933
com o art. 54º reafirma-se que "O
serviço militar é geral e obrigatório. A lei determina a forma de ser prestado"
e no art.56º diz-se que "O Estado promove, protege e auxilia instituições civis que tenham por fim
adestrar e disciplinar a mocidade em ordem a prepará-la para o cumprimento dos
seus deveres militares e patrióticos." (ibidem). Tratava-se da
Mocidade Portuguesa.
Por sua vez a
Constituição de 1976, até à revisão de 1996, no artigo 276º dizia no ponto 1
que "A defesa da Pátria é dever fundamental de todos os portugueses."
E no ponto 2 que " O serviço
militar é obrigatório nos termos e pelo período que a lei prescrever."
A
revisão de 1996 não tocou no preceito deste ponto 1 e substituiu o ponto 2 que
passou a ter a redacção seguinte: “O
serviço militar é regulado por lei, que fixa as formas, a natureza voluntária
ou obrigatória, a duração e o conteúdo da respectiva prestação.”
Conclusões
Relativamente ao tipo de
serviço militar e ao tipo de forças militares podemos determinar três períodos
distintos na História de Portugal. Da fundação do reino até à restauração em
1640, durante cinco séculos, em que a força armada é muito diversificada quanto
à origem e à natureza (guarda do rei, cavalaria dos grandes senhores, ordens
militares, cavalaria vilã, milícias concelhias) e predominantemente não
permanente; um segundo período, que vai de 1640 a 1911 com a República, em que
o exército é permanente, o recrutamento é coercivo, abrange com frequência as
camadas marginais da população e utiliza com peso significativo os mercenários
estrangeiros por vezes até ao mais alto nível do comando; um terceiro período
que vem desde 1911 e é caracterizado por Forças Armadas permanentes assentes no
serviço militar obrigatório, universal, em tempo de paz e num quadro permanente
que constitui a garantia da qualidade e dos saberes acrescidos.
O SMO não só não existe
desde as origens da nacionalidade, como tem uma existência recente.
No entanto, o SMO apesar
dos desvios ao seu carácter universal, teve um papel importante em Portugal
para a criação de uma consciência
cívica, para enraizar a consciência do dever de defesa da pátria, para a
consolidação do sentimento nacional.
Com o SMO, ir à tropa,
foi até os anos 70 a oportunidade de o camponês do interior conhecer a cidade,
tomar contacto com tecnologias mais avançadas do que a enxada ou a charrua ou
vencer o analfabetismo nas escolas regimentais. Foi a oportunidade de o
transmontano conhecer o algarvio ou o alentejano, o beirão conhecer o minhoto
ou o ribatejano e reconhecerem nas suas diferenças o carácter comum da sua
condição de cidadãos, empenhados na defesa da mesma pátria portuguesa.
Não devemos, no entanto,
idealizar excessivamente a realidade e atribuir ao serviço militar obrigatório
o papel que não teve nem podia ter, o papel de factor principal na formação
cívica ou na formação da consciência nacional dos portugueses. Se fôssemos por
aí que seria da consciência cívica e apego patriótico das mulheres ou de quase
metade dos homens que não prestaram serviço militar?
Ou no plano internacional
que pensar do civismo, da consciência nacional ou amor à pátria dos ingleses ou
dos norte-americanos que não conheceram, a não ser excecionalmente, a
conscrição?
Desde que é entidade
política independente, o que é permanente em Portugal, como em todas as
entidades colectivas que preservam a sua identidade e sobrevivência, é a defesa
do território, do poder organizado, do reino ou da República, dos seus
“interesses” que frequentemente são identificados fora do seu território ou,
numa versão moderna e sucinta a defesa
da Pátria.
Os perigos para a
Instituição militar, e em consequência para a defesa do país, provenientes da
extinção do SMO foram também, com razão ou sem ela dramatizados. Há quem receie que a profissionalização
coloque as FFAA nos carris da mercenarização, ou por falta de meios financeiros
e baixas remunerações as transforme numa força armada de marginais e
desqualificados ou não se consiga atrair o número suficiente de voluntários e
por essa via se caminhe para a própria destruição das FFAA.
Não é crível que se possa
cair nesta situação extrema mas a profissionalização das FFAA exige que
previamente se conheça os custos e se assegurem os meios financeiros que
garantam a indeclinável dignidade da condição militar. E que garantam a
presença nas FFAA de portugueses de todas as condições e origens sociais, com
os saberes necessários, de modo a que elas
não deixem de ser um Instituição prestigiada na qual os portugueses se
revejam com orgulho.
Podemos concluir que o
serviço militar é um meio e não um fim em si. O fim que se pretende alcançar
com ele é a Defesa adequada. Esta, por sua vez, em função do momento histórico
exige um serviço militar consonante.
A mudança de natureza do
serviço militar que hoje se perspectiva é adequada às novas missões das Forças
Armadas, ao contexto político e estratégico, ao sistema de alianças e às novas conceções
do emprego de forças, conjuntas e combinadas. E apesar do inegável e importante
o papel que o serviço militar obrigatório teve, particularmente até aos anos
setenta deste século como factor de coesão nacional e formação cívica, ele tem
vindo a perder importância e pode ser relativizado no mundo da comunicação que
é já o Portugal de hoje, no fim do século XX.
Raimundo Narciso, deputado do PS, membro da Comissão de Defesa Nacional da Assembleia da República.
_____________________________
(1) - Michael Howard,
"A Guerra na História da Europa". Europa-América, 1997.
(3) – M. Raoul Girardet. Exposição ao Senado
Francês, em 1996, no âmbito da preparação de legislação que consagrou a
profissionalização das forças armadas francesas.
(4) - "De la
conscription à l'armée de métier: le cas britannique" Défense Nationale,
Maio de 1992.
(5) José Matoso
"Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros" 2ª edição, 1985, Guimarães
Editores.
(6) José Matoso (op.cit.
pág 232)
(7) Regine Pernoud em
"Os Templários", pág.149 Europa-América, 2ª edição.
(8) - Carlos Selvagem em
"Portugal Militar" pág141, Lisboa, Imprensa Nacional, 1931.
(9) - Carlos Selvagem
op.cit. pág. 324
(10) - Gen. Ramires de
Oliveira em "História do Exército Português", I Volume, EME, 1993
pág. 112.
(11) - Oliveira Martins em "História de
Portugal" pág. 416/7.
(12) - Carlos Selvagem
Op.cit. pág. 466.
(13) - Fernando Pereira
Marques " Exército e Sociedade em Portugal" pág. 40 e 41, A Regra do
Jogo, 1981.
(14) - Gen. Belchior
Vieira em "Visão Prospectiva do Serviço Militar em Portugal", IAEM,
1996.
(15) -
"Constituições Portuguesas", Assembleia da República, 1992.
Nota: Todos os sublinhados são do autor do artigo.